terça-feira, 5 de agosto de 2014

Escalada Esportiva – um pouco de história

A história do montanhismo mundial é de tamanha grandeza que seriam necessários alguns livros para abordar o tema, tendo em vista a grande quantidade de ramificações que dele surgiram ao longo desses séculos.
Podemos dizer que a escalada esportiva da forma como a conhecemos hoje é relativamente recente, entretanto, apesar de ser considerado um esporte “jovem” por muitos, teremos que voltar ao final do século XIX para entender melhor sua história e evolução, quando já havia alguns escaladores transgredindo a escalada tradicional da época, realizando suas escaladas de forma livre e natural, usando apenas a força e o equilíbrio do corpo, sem o auxílio de meios artificiais (estribo, stopper, Cliff, etc.), esses eram usados apenas com o intuito de assegurar uma possível queda.



Escalada em livre não é escalar sem corda (como muitos acreditam), mas sim escalar utilizando apenas nosso corpo e mente para avançar parede acima, sem utilizar métodos artificiais, sendo que estes estariam somente disponíveis por questões de segurança em caso de quedas, mas nunca nos ajudariam a progredir fisicamente.



Paul Preuss
A escalada livre já era praticada no final do século XIX, com o escalador austríaco, filósofo e botânico de profissão Paul Preuss (1886 – 1913), considerado como um dos pais da escalada em livre, e para muitos como o escalador mais interessante na história do alpinismo, sendo que já fazia cordadas de V grau francês (quinto grau francês) antes de 1900. Sempre se mostrou contrário ao uso de meios artificiais, inclusive a corda que deveria ser usada somente em caso de perigo ou para segurar o companheiro.  Morreu no auge de seus 27 anos durante uma de suas escaladas, tendo realizado cerca de 1200 ascensões, das quais 300 foram em solitário e 150 foram primeiras ascensões.



Rudolf Fehrmann
Não podemos também falar da história da escalada em livre sem mencionar as paredes de arenito de Elbsandstein (região leste da Alemanha), sendo um dos primeiros setores de escalada em livre, quando o alemão Oskar Schuster escalou diversas vias sem o auxílio de meios artificiais. Entretanto foi seu compatriota Rudolf Fehrmann (1886 – 1947) que publicaria em 1912 o primeiro guia de Elbsandstein, onde o mesmo descrevia as regras que deveriam ser seguidas, tais como: não utilizar stoppers, apenas cordeletes com nós para entalar nas fissuras; não usar carbonato de magnésio; somente escalar picos com mais de 8 metros de altura e não colocar mais de duas proteções a cada 8 metros. A escalada se transformava em uma atividade muito exigente e exposta, já que poucas proteções eram utilizadas e obrigavam os escaladores a superar trechos na rocha entre as proteções totalmente em livre, e com riscos de uma queda mortal.

Elbsandstein


Emilio Comicci
Emilio Comicci
Já nas décadas de 1920 e 1930, um dos maiores protagonistas da escalada em livre era sem dúvida o italiano Emilio Comici (1901 – 1940), excepcional escalador tendo conquistado diversas vias nas Dolomitas. Foi o escalador a propor o primeiro VI grau italiano, nível um tanto inesperado para a época, além do qual o mesmo Comici enfrentava essa dificuldade em escalada solo (sem cordas ou qualquer uso de equipamento artificial). Mas o que mais chamou a atenção nesse escalador não foi o seu excepcional nível, mas sim a elegância com que progredia em suas escaladas e que deixavam seus contemporâneos deslumbrados com o que viam. Comici não buscava apenas a dificuldade pura, mas sim o lado estético da escalada, propondo linhas onde queria que fossem lembradas como verdadeiras obras de arte. Outra grande contribuição deste magnífico escalador foi sem dúvida o planejamento, para escalar em alto nível era necessário treinar, e desta forma se preparava para seus grandes desafios, treinando sobre vias mais acessíveis, o que era um grande desafio para a ética da época.


Margalef - Espanha

Atualmente a escalada é um termo genérico que engloba diversos esportes diferentes. Mas nem sempre essa afirmativa foi bem aceita. Até meados da década de 1960, todos os escaladores seguiam regras e procedimentos parecidos.

Nas décadas de 1950 e 1960 a comunidade escaladora era quase que totalmente voltada para escaladas em grandes paredes e escalada alpina, período em que houve grande avanço e melhora nas tecnologias dos equipamentos usados na escalada tradicional e artificial.


Parque Nacional de Yosemite - Califórnia

Nessa época havia um escalador que seguia no sentido contrário a esse movimento, era o norte americano John Gill, que buscava a extrema dificuldade técnica e força em pequenos blocos de rocha. Nascia então o boulder, onde o objetivo era vencer os poucos movimentos desses blocos e buscar a dificuldade pura da escalada, sem equipamentos de segurança. Gill usava apenas a sapatilha de escalada e também o carbonato de magnésio, cujo uso foi ele mesmo quem introduziu na escalada. Usou de sua experiência como ginasta para melhorar seu desempenho e rendimento na rocha. Aos 65 anos de idade ainda era capaz de levantar o peso de seu próprio corpo com apenas um braço, e completar alguns bloques dinâmicos, que provam sua motivação sem limites.

John Gill, ginástica olímpica aplicada à escalada

Quando lhe perguntaram sobre qual a mensagem que ele queria transmitir para as novas gerações, ele respondeu: “Aconselharia que se afastassem das modas, não nadar na direção da corrente, mas sim ao contrário, em busca de algo novo que abra novas portas para a escalada. Em uma palavra: devemos cultivar o individualismo”.


Gill no "auge" de seus 60 anos

Enquanto os norte-americanos continuavam o desenvolvimento desse conceito aplicado por John Gill a seu nível máximo, sobretudo na década de 1970, quando a sensação eram as grandes escaladas do Parque Yosemite, do outro lado do Atlântico, um alemão de bigodes grandes e que ao som da sua guitarra tocava músicas de Simon & Garfunkel, escalava 7a Fr (francês), e foi o principal responsável pelo motivo que algumas vezes perdemos a razão trabalhando uma via para poder “encadená-la”. Essa pessoa era Kurt Albert (1954 – 2010), um dos maiores ícones da escalada esportiva e grande responsável pela forma como escalamos hoje, quando em 1975 pintou um ponto vermelho na base da primeira via que ascendeu sem se segurar em nenhum ponto artificial. Acabava de dar o primeiro passo para o que é hoje a escalada esportiva. Foi influenciado pelas suas visitas à Elbsandstein, e aplicou as regras locais desse setor para as rochas calcárias de Frankenjura. Primeiramente era válido apenas parar nas proteções para descansar, mas teve a brilhante idéia que mudaria completamente o conceito da escalada em livre: não era válido parar para descansar em nenhum ponto de segurança. Dessa forma, para que a escalada fosse considerada válida, deveria escalar desde o chão até o final da via sem quedas e sem se utilizar de meios artificiais para tal. Acabava de inventar o “red point” (ou cadena se preferir), termo até hoje mundialmente aceito e utilizado pelos escaladores esportivos.

Kurt Albert em um momento "solo"

Nessa mesma “leva” aparece o maior escalador esportivo de todos os tempos, o alemão Wolfgang Güllich (1960 – 1992). Güllich foi um desses excepcionais escaladores capazes de romper os limites do possível, e sem por isso perder a modéstia. Durante o tempo em que esteve presente, foi responsável pela quebra de vários níveis de dificuldade na escalada mundial. Durante sua trajetória, estabeleceu o primeiro 8b Fr (10b Br) com a via “Kanal im Rückun” em 1984; o primeiro 8b+ Fr (10c Br) com a via “Punks in the gym” em 1985; o primeiro 8c Fr (11a Br) com a via “Wallstreet” em 1987 e o primeiro 9a Fr (11c Br) com a mítica via “Action Direct” em 1991.

Wolfgang Güllich no famoso solo da via "Separate Reality" no El Captain - Yosemite - EUA

Além disso, Güllich foi um dos primeiros a levar a alta dificuldade conquistada na escalada esportiva ao big wall, aplicando sempre o conceito da escalada livre, desde as extremas paredes do Karakorum (Paquistão), até as imponentes paredes patagônicas. Teve também uma breve passagem pelo Brasil na década de 1980, deixando a via “Southern Confort” – 10a Br, que por muito tempo foi a via mais difícil do Brasil e da América Latina.

Güllich na sua criação - "Action Direct"

Foi um dos primeiros também a realizar treinamento específico para um objetivo determinado, inventando o “campus board” para realizar a cadena do primeiro 9a Fr do mundo.


Campus board para mandar a via
Infelizmente o destino desse grande escalador foi uma morte precoce, onde não suportou os ferimentos de um acidente de carro. Güllich voltava de uma entrevista numa rádio local e dormiu enquanto dirigia. Uma grande perda para o montanhismo, porém sempre será lembrado e respeitado pela comunidade escaladora.

Bem, encerramos por aqui a primeira parte desse artigo, onde pudemos dar uma breve "pincelada" na história da escalada mundial. Lembrando que o foco foi o avanço da escalada esportiva ao longo dessas décadas, e caso algum nome ou fato importante tenha ficado sem o devido registro, sinta-se a vontade para nos corrigir e colaborar com mais informações. Afinal esse espaço também é seu.

No próximo post, iremos dar continuidade ao assunto, procurando sempre passar com a maior clareza e fidelidade possível todos os principais momentos da escalada esportiva mundial.

Uma ótima semana a todos e bons ventos...



   















Nenhum comentário:

Postar um comentário