terça-feira, 19 de agosto de 2014

Escalada vem de berço

Se alguém lhe fizesse a seguinte pergunta: “Quando você começou a escalar?”

Qual seria sua resposta?

Muitos diriam cinco anos, outros dez anos. Mas será mesmo? Talvez pelo modo como a escalada seja vista, de forma profissional e esportiva sim, entretanto se você recebesse a seguinte resposta:


- Comecei a escalar bem cedo, um pouco antes de começar a caminhar, acho que com um ano de idade! – talvez nesse momento você daria boas risadas, achando que se trata de uma piada ou pegadinha. Mas vamos analisar de forma mais aberta e ampla essa afirmativa.




Todos nós nascemos com uma habilidade natural para escalar, e podemos considerar aquele nosso “bercinho” de infância como a primeira “grande montanha” de nossas vidas. Impressiona ver um bebê de pouco mais de três meses, se agarrando nas paredes do berço e tentando se puxar pra cima. Quem tem criança em casa ou na família, sabe das inúmeras ocasiões que esses pequenos nos surpreendem, ao subir em lugares que você jamais imaginava ser possível. Então ao invés de estimular esse dom natural, procurando conduzi-lo com segurança, a maioria das pessoas costuma dificultar esse processo, colocando barreiras que a fazem desistir, e na maioria das vezes inibem completamente o acesso delas nesses locais.

Saindo da fase de bebê, a partir dos dois anos de idade ninguém mais segura essas “feras”. É só ver uma escada, uma árvore, uma pedra grande, um muro, ou qualquer outra situação que seja possível “escalar” que lá estão eles, cheios de energia para superar o obstáculo, demonstrando um grande orgulho quando conseguem atingir o objetivo.

Ao longo da vida vamos perdendo esse fascinante instinto, devido ao modo como as sociedades vivem hoje, acreditando que essa atividade não se encaixa mais na vida moderna que levamos.

Em 2012, li um artigo muito interessante que foi publicado no site altamontanha.com, da educadora física e escaladora Debora Hashiguchi de São Paulo, em que a mesma propõe que a escalada é uma atividade fundamental para o desenvolvimento humano desde o nascimento. Ela vai mais além, citando a escalada no combate a doenças como Alzheimer e também para evitar o sedentarismo e depressão.




Por Debora Hashiguchi

O corpo humano é um sistema bastante complexo, vários órgãos e membros, abundantes articulações com diferentes graus de liberdade e muitas combinações para tudo isso. Você já parou para pensar como é que aprendemos a organizar e utilizar nosso corpo e todos os recursos que ele oferece? Já se perguntou se o está fazendo da melhor forma? Ou o que poderia fazer para envelhecer de forma mais saudável? Você foi feito para escalar, subir é uma atividade natural do ser humano, praticada desde o nascimento e, pelo menos, durante o desenvolvimento dos seus primeiros anos de vida.

Os primeiros movimentos de um recém-nascido são reflexos involuntários, fonte de informação sobre a saúde neuromotora, e seu estímulo desencadeia o desenvolvimento dos movimentos voluntários. Ao nascer, as mãos já são utilizadas para agarrar tudo o que tocam, nesta fase o recém-nascido escala involuntariamente. Quando colocamos um brinquedo pendurado em cima de um berço o bebê aprende a controlar os movimentos dos braços e das mãos, uma ferramenta multifuncional do corpo humano, e a partir deste controle tudo o que fazemos é escalar voluntariamente. O bebê aprende a se sentar utilizando as mãos para se agarrar, puxar e empurrar “coisas”, coordenando os movimentos dos braços e das mãos e fortalecendo a musculatura para sustentação do corpo na posição vertical. Ao engatinhar aprende a coordenar os movimentos das pernas e braços juntos, prática fundamental na escalada; para ficar em pé escala, literalmente, as grades do berço e os móveis da casa. Toda criança, gosta de escalar árvores e muros, nos parques gosta de brinquedos onde possa agarrar e subir, agarrar e balançar, agarrar e deslizar, toda criança tem uma tendência natural em agarrar e subir “coisas”, o desafio de subir “grandes” alturas é visto como um convite para uma divertida brincadeira. Pode-se dizer que a escalada faz parte do desenvolvimento humano, uma vez que utilizamos esta técnica desde que nascemos.

Correr, saltar, chutar, arremessar entre outras, o bom desenvolvimento destas habilidades são totalmente dependentes do desenvolvimento do esquema corporal (comportamento do corpo), consciência corporal (conhecimento do corpo) e controle corporal (uso consciente do corpo) e a escalada, atividade mais básica e mais praticada pelo ser humano nesta fase, trabalha todos estes aspectos e muito mais. Então, com todos os benefícios da atividade, porque não continuar a escalar?

Quem observa uma criança se divertindo em um parque infantil é testemunha de sua alegria ao escalar os brinquedos. O que é tão divertido? O que é tão bom? Talvez hoje não seja tão óbvio, mas estas são pequenas conquistas da autoestima na superação de limites, é isso que nos faz feliz, saber que você pode e que você consegue. O ser humano procura por superações por toda a vida, mas muitas vezes não sabe onde ou como encontrá-las. Quanto maior sua habilidade na escalada, maior suas chances de sucesso em outras tarefas e empreitadas, menor chance de decepções. A escalada trabalha todas as capacidades físicas: resistência, força, velocidade, agilidade, flexibilidade, equilíbrio e coordenação motora, mais que um esporte é uma atividade física e como qualquer atividade física combate os maiores vilões do século como o sedentarismo, depressão e doenças crônico degenerativas.

Além do aspecto motor, a capacidade cognitiva também é bastante exigida na escalada, você tem que se concentrar no que vai fazer, lida com constantes desafios, está sempre calculando a resolução de seus “problemas” e utiliza o raciocínio lógico para otimizar sua movimentação, estes desafios cognitivos de concentração e memória contribuem para a prevenção e minimiza efeitos de doenças degenerativas como o Alzheimer.

Se todos estes benefícios ainda não são motivos suficientes para você iniciar a prática da escalada podemos ainda citar seus benefícios sociais: o controle da ansiedade é uma exigência constante, a superação de seus limites, traz mais autoconfiança, portanto, mais felicidade para o ser humano, você é um “superador” e um conquistador. Em um ambiente de escaladores você encontra muitas tribos diferentes com diferentes personalidades, mas nunca vai encontrar pessoas estressadas, mal humoradas, deprimidas ou com qualquer aspecto negativo, o ambiente de escalada é alegre, descontraído, as pessoas se apoiam, cooperam, se ajudam, torcem umas pelas outras, convivem muito bem. Quando você está escalando está sempre na companhia de alguém em quem tem que confiar e com quem tem que cooperar, muitas vezes está em contato com a natureza aprendendo a conviver com ela, respeitando-a, trabalhando a integração de mínimo impacto com outros e com ambientes naturais.

A escalada é um esporte completo: físico, social e psicológico. Hoje em dia, infelizmente, os mitos e lendas sobre os “perigos” da escalada faz muitos abandonarem esta prática já na fase da adolescência e o desenvolvimento desta atividade regride e se estabiliza. O ser humano se dá por satisfeito e não chega a se aproveitar dos maiores benefícios deste desenvolvimento e nem ver a beleza do que está acima de sua própria cabeça. Porque parar por aí? O desenvolvimento acaba sendo subaproveitado e muitos dos seus benefícios não sendo alcançados. Nos dias de hoje, onde as responsabilidades profissionais estão cada vez mais presentes nas 24hs da vida das pessoas, a escalada é atividade essencial para o desenvolvimento de suas potencialidades.

Existem muitas modalidades diferentes de escalada, qualquer pessoa, de qualquer cultura e com qualquer classe social pode encontrar no universo da escalada uma que se encaixe no seu perfil, que lhe proporcione maior prazer, que a faça mais forte, enfim que desenvolva todas as suas potencialidades para uma vida mais autoconfiante, com maiores conquistas, mais saudável. Como dizem os escaladores: “Kmon”, vamos escalar, vamos ser felizes.

Debora Hashiguchi, formada em Educação Física (1997), especialista em Treinamento Desportivo (2006) e escaladora desde 2003.

Fonte: www.altamontanha.com








terça-feira, 12 de agosto de 2014

Escalada Esportiva - um pouco de história (continuação)

No post passado, iniciamos uma viagem no tempo para conhecer um pouco mais sobre a história e evolução da escalada esportiva. Desde o final do século XIX, passando por alguns dos principais precursores do esporte, até chegar à década de 1980, período em que a escalada esportiva passou por grandes mudanças, e ganhou o modelo que é praticado até os dias de hoje.




Apesar de ser o melhor escalador de sua época, Güllich não recebia tanto a atenção da mídia como merecia. Por outro lado, a França era considerada como centro mundial da escalada esportiva, com setores muito bem desenvolvidos e de altíssima qualidade, e isso se deve muito ao escalador Patrick Edlinger, que sob as lentes de Jean Paul Janssen criaram uma nova imagem do escalador moderno, a forma como a escalada era demonstrada enchia os olhos dos expectadores, tamanha era a leveza e beleza das técnicas. Deram a volta ao mundo e conseguiram chamar a atenção da imprensa não especializada e mostrar uma nova forma de entender a escalada esportiva. 




Mesmo sem chegar a ser o melhor escalador do mundo em termos absolutos (apesar de ter um nível de 8a+ Fr à vista e 8c Fr trabalhado), possuía um visual moderno, uma ética muito respeitosa e um estilo de vida mais “descolado”, o que atraía a atenção do público. Foi fonte de inspiração para muitos escaladores como continua sendo, e muitas revistas especializadas da época o reverenciavam.


                                           


Outra pessoa que sem dúvida merece ser lembrada com destaque nessa lista é a escaladora Lynn Hill, nascida em 1961 nos Estados Unidos.
Começou a escalar em 1975 com apenas 14 anos, e em 1979 já mandava 7c Fr (9a Br), enquanto na Europa o nível máximo masculino alcançado era 7c+ Fr (9b Br), e o nível feminino não passava de 6c+ Fr (7b Br). 


Lynn Hill em Yosemite - EUA


Ganhou mais de 30 competições internacionais, realizou alguns dos primeiros oitavos (francês) femininos, e na década de 1990 voltou a surpreender a todos com vias de 8a’s Fr (9c Br) à vista, e sobretudo o primeiro 8b+ Fr (10c Br) feminino da história da escalada mundial com a via “Masse Critique”, após o conquistador dessa via (Jean Baptiste Tribout) dizer que jamais seria feita por uma mulher.
Em 1992 deixa de lado o mundo da competição e da escalada esportiva para se dedicar à escaladas em grandes paredes, como exemplo da ascensão em livre da via “The Nose” - Yosemite em menos de 24 horas em 1994. Depois de um par de anos, voltou para o cenário da escalada esportiva com a repetição da via “To bolt or not to be”, aberta em 1986 e sendo a primeira proposta de 5.14a (10c Br) dos Estados Unidos. Com pouco mais de 50 anos de idade, Lynn Hill ainda permanece na ativa.


Lynn Hill


Foi também a partir da década de 1980 que começaram a surgir as primeiras competições de escalada. Sendo a primeira realizada em 1985 na Itália, em parede natural (rocha). Em 1987, foi realizado pela primeira vez um campeonato em parede artificial, e em 1990 aconteceu a primeira Copa do Mundo de Escalada Esportiva. Mas foi em 1992 nos jogos olímpicos de Barcelona que o esporte teve sua consagração, quando foi praticado durante o evento como demonstração ao público.


Cartaz da primeirra Copa do Mundo de Escalada


Dentro desse contexto da escalada de competição, um dos grandes nomes da escalada mundial sem sombra de dúvidas foi do escalador francês François Legrand, provavelmente o maior ganhador da história de competições internacionais de escalada esportiva.

Escalador carismático e sonhador começou sua trajetória aos 18 anos, quando saiu da casa dos pais e se refugiou em uma gruta nas falésias de Buoux na França, onde passou vários meses escalando.


François Legrand
Tendo referência grandes nomes como Lynn Hill e Yujii Hirayama, Legrand ganhou sua primeira copa do mundo em 1990 e continuaria no topo durante praticamente uma década, colecionando diversos campeonatos mundiais, copas do mundo, e outras competições internacionais como o X-Games e o tradicional Rock Master, que é realizado todos os anos na cidade de Arco na Itália e que conta com a presença de alguns dos principais escaladores do mundo.




François Legrand também teve grandes resultados na rocha com 9a Fr trabalhado e 8b Fr à vista, e viajou por diversos países ao redor do mundo, escalando e alimentando o sonho de diversos jovens escaladores que o tinham como modelo. Teve inclusive passagem pelo Brasil em 1995, quando ministrou aulas de escalada para alguns escaladores brasileiros, que haviam sido selecionados em uma seletiva realizada no SESC Ipiranga – SP.

Mas desde 1991 quando o alemão Wolfgang Güllich havia mandado a via “Action Direct”, a barreira do 9a Fr não era superada.
Uma década depois, no ano de 2001, o menino prodígio Chris Sharma sobe mais um nível para a escalada mundial, com a via “Biographie” 9a+ Fr (12a Br) em Ceüse na França. Em 1997 ele já havia realizado a primeira parte da via, que é cotada em 8c+ Fr (11b Br). Sharma chamou a junção das duas seções de “Realization”, por ser considerada a primeira desse nível. Depois de dez anos se estabelecia um novo patamar de dificuldade na esportiva mundial.


Chris Sharma na "Realization" - 9a+ Fr


Em 2008 Sharma se anota com “Jumbo Love” 9b Fr (12b Br) e avança mais um degrau no nível da escalada esportiva. Poucos meses depois realiza a primeira ascensão da via “Golpe de Estado” 9b Fr. Em setembro de 2009 realiza a primeira ascensão de “Neanderthal” , outro 9b Fr. Foi o primeiro a fazer uma via desse nível de dificuldade aceita pela comunidade escaladora, sem que houvesse alguma polêmica por trás de tal feito, uma vez que já houve em momentos anteriores  propostas para esse grau e que ainda são casos de muita discussão. Em uma outra oportunidade falaremos sobre esse assunto específico.



Apenas na década de 2010 que começariam a aparecer as primeiras repetições desse grau, com a primeira repetição de “Golpe de Estado”, feita pelo mais novo prodígio da escalada, o jovem tcheco Adam Ondra. A partir de então Ondra passaria a ser o principal protagonista do momento na escalada esportiva, após ter feito diversas vias nesse grau, inclusive derrubando vários projetos antigos. Começou a virar quase que "rotina" as notícias de grandes cadenas do garoto. Uma verdadeira "máquina de escalar".



Ondra em um crux da via "Change", primeiro 9b+ Fr do mundo
Cerca de cinco anos após Sharma haver se anotado com “Jumbo Love”, Ondra se consagra na história da escalada como o primeiro escalador a realizar uma via graduada em 9b+ Fr (12c Br), com a via “Change”, localizada na imponente parede de Flatanger – Noruega.







Foi ele juntamente com Chris Sharma, que juntos tramaram uma batalha para vencer a via mais difícil do mundo, “La dura dura” 9b+ Fr (12c Br). Ondra realizou a primeira ascensão da via e logo depois foi repetida por Sharma.

Adam Ondra comentando sobre a cadena de "La dura dura
Chris Sharma no "crux" principal de "La dura dura"

Há muitos nomes e momentos importantes da escalada esportiva que mereciam ser citados, entretanto não haveria espaço e tempo suficiente para falar o suficiente sobre grandes ícones da escalada como: Alexander Huber e Thomas Huber, Ben Moon, Iker Pou, Jacky Godoffe, Juan Manuel Garcia, Luisa Iovanne, J.B Tribout, Isabelle Patissier, John Bachar, Antoine Le Menestrel, Maurizzio Zanolla, Robyn Erbesfield, Fred Rouhling, Dan Osman, Elie Chevieux, Bernabé Fernández, Josune Bereciartu, Yuji Hirayama, Tommy Caldwel, Jerry Moffat, Didier Raboutou e tantos outros que mereciam ser citados. Em outra oportunidade falaremos sobre algumas personalidades conhecidas da escalada mundial.

A escalada esportiva segue em franco desenvolvimento, principalmente nessa última década, onde o número de adeptos cresce de forma exponencial e diversos setores novos estão sendo desenvolvidos.

Por muito pouco também a escalada esportiva não foi escolhida para fazer parte dos jogos olímpicos de 2020. Nunca chegamos tão perto de ter a modalidade de competição da escalada dentro de uma olimpíada, mas isso com certeza é só uma questão de tempo. A escalada de competição se profissionalizou e mudou muito nos últimos anos, principalmente após a fundação do IFSC (International Federation of Sport Climbing), órgão responsável pelas principais competições internacionais, e que foi desmembrado da UIAA (União Internacional das Associações de Alpinismo), órgão máximo do montanhismo mundial.

As tecnologias investidas no desenvolvimento de equipamentos também contribuíram de forma significativa para a evolução da escalada.  Os materiais cada vez mais leves e resistentes, assim como um design mais moderno e atraente, passam mais segurança e confiança para o praticante.
A história da escalada esportiva foi construída ao longo de muitas décadas, com muitas conquistas, tragédias, polêmicas, desafios e um sem número de colaboradores que fizeram e fazem da escalada um dos esportes mais fascinantes do planeta.











terça-feira, 5 de agosto de 2014

Escalada Esportiva – um pouco de história

A história do montanhismo mundial é de tamanha grandeza que seriam necessários alguns livros para abordar o tema, tendo em vista a grande quantidade de ramificações que dele surgiram ao longo desses séculos.
Podemos dizer que a escalada esportiva da forma como a conhecemos hoje é relativamente recente, entretanto, apesar de ser considerado um esporte “jovem” por muitos, teremos que voltar ao final do século XIX para entender melhor sua história e evolução, quando já havia alguns escaladores transgredindo a escalada tradicional da época, realizando suas escaladas de forma livre e natural, usando apenas a força e o equilíbrio do corpo, sem o auxílio de meios artificiais (estribo, stopper, Cliff, etc.), esses eram usados apenas com o intuito de assegurar uma possível queda.



Escalada em livre não é escalar sem corda (como muitos acreditam), mas sim escalar utilizando apenas nosso corpo e mente para avançar parede acima, sem utilizar métodos artificiais, sendo que estes estariam somente disponíveis por questões de segurança em caso de quedas, mas nunca nos ajudariam a progredir fisicamente.



Paul Preuss
A escalada livre já era praticada no final do século XIX, com o escalador austríaco, filósofo e botânico de profissão Paul Preuss (1886 – 1913), considerado como um dos pais da escalada em livre, e para muitos como o escalador mais interessante na história do alpinismo, sendo que já fazia cordadas de V grau francês (quinto grau francês) antes de 1900. Sempre se mostrou contrário ao uso de meios artificiais, inclusive a corda que deveria ser usada somente em caso de perigo ou para segurar o companheiro.  Morreu no auge de seus 27 anos durante uma de suas escaladas, tendo realizado cerca de 1200 ascensões, das quais 300 foram em solitário e 150 foram primeiras ascensões.



Rudolf Fehrmann
Não podemos também falar da história da escalada em livre sem mencionar as paredes de arenito de Elbsandstein (região leste da Alemanha), sendo um dos primeiros setores de escalada em livre, quando o alemão Oskar Schuster escalou diversas vias sem o auxílio de meios artificiais. Entretanto foi seu compatriota Rudolf Fehrmann (1886 – 1947) que publicaria em 1912 o primeiro guia de Elbsandstein, onde o mesmo descrevia as regras que deveriam ser seguidas, tais como: não utilizar stoppers, apenas cordeletes com nós para entalar nas fissuras; não usar carbonato de magnésio; somente escalar picos com mais de 8 metros de altura e não colocar mais de duas proteções a cada 8 metros. A escalada se transformava em uma atividade muito exigente e exposta, já que poucas proteções eram utilizadas e obrigavam os escaladores a superar trechos na rocha entre as proteções totalmente em livre, e com riscos de uma queda mortal.

Elbsandstein


Emilio Comicci
Emilio Comicci
Já nas décadas de 1920 e 1930, um dos maiores protagonistas da escalada em livre era sem dúvida o italiano Emilio Comici (1901 – 1940), excepcional escalador tendo conquistado diversas vias nas Dolomitas. Foi o escalador a propor o primeiro VI grau italiano, nível um tanto inesperado para a época, além do qual o mesmo Comici enfrentava essa dificuldade em escalada solo (sem cordas ou qualquer uso de equipamento artificial). Mas o que mais chamou a atenção nesse escalador não foi o seu excepcional nível, mas sim a elegância com que progredia em suas escaladas e que deixavam seus contemporâneos deslumbrados com o que viam. Comici não buscava apenas a dificuldade pura, mas sim o lado estético da escalada, propondo linhas onde queria que fossem lembradas como verdadeiras obras de arte. Outra grande contribuição deste magnífico escalador foi sem dúvida o planejamento, para escalar em alto nível era necessário treinar, e desta forma se preparava para seus grandes desafios, treinando sobre vias mais acessíveis, o que era um grande desafio para a ética da época.


Margalef - Espanha

Atualmente a escalada é um termo genérico que engloba diversos esportes diferentes. Mas nem sempre essa afirmativa foi bem aceita. Até meados da década de 1960, todos os escaladores seguiam regras e procedimentos parecidos.

Nas décadas de 1950 e 1960 a comunidade escaladora era quase que totalmente voltada para escaladas em grandes paredes e escalada alpina, período em que houve grande avanço e melhora nas tecnologias dos equipamentos usados na escalada tradicional e artificial.


Parque Nacional de Yosemite - Califórnia

Nessa época havia um escalador que seguia no sentido contrário a esse movimento, era o norte americano John Gill, que buscava a extrema dificuldade técnica e força em pequenos blocos de rocha. Nascia então o boulder, onde o objetivo era vencer os poucos movimentos desses blocos e buscar a dificuldade pura da escalada, sem equipamentos de segurança. Gill usava apenas a sapatilha de escalada e também o carbonato de magnésio, cujo uso foi ele mesmo quem introduziu na escalada. Usou de sua experiência como ginasta para melhorar seu desempenho e rendimento na rocha. Aos 65 anos de idade ainda era capaz de levantar o peso de seu próprio corpo com apenas um braço, e completar alguns bloques dinâmicos, que provam sua motivação sem limites.

John Gill, ginástica olímpica aplicada à escalada

Quando lhe perguntaram sobre qual a mensagem que ele queria transmitir para as novas gerações, ele respondeu: “Aconselharia que se afastassem das modas, não nadar na direção da corrente, mas sim ao contrário, em busca de algo novo que abra novas portas para a escalada. Em uma palavra: devemos cultivar o individualismo”.


Gill no "auge" de seus 60 anos

Enquanto os norte-americanos continuavam o desenvolvimento desse conceito aplicado por John Gill a seu nível máximo, sobretudo na década de 1970, quando a sensação eram as grandes escaladas do Parque Yosemite, do outro lado do Atlântico, um alemão de bigodes grandes e que ao som da sua guitarra tocava músicas de Simon & Garfunkel, escalava 7a Fr (francês), e foi o principal responsável pelo motivo que algumas vezes perdemos a razão trabalhando uma via para poder “encadená-la”. Essa pessoa era Kurt Albert (1954 – 2010), um dos maiores ícones da escalada esportiva e grande responsável pela forma como escalamos hoje, quando em 1975 pintou um ponto vermelho na base da primeira via que ascendeu sem se segurar em nenhum ponto artificial. Acabava de dar o primeiro passo para o que é hoje a escalada esportiva. Foi influenciado pelas suas visitas à Elbsandstein, e aplicou as regras locais desse setor para as rochas calcárias de Frankenjura. Primeiramente era válido apenas parar nas proteções para descansar, mas teve a brilhante idéia que mudaria completamente o conceito da escalada em livre: não era válido parar para descansar em nenhum ponto de segurança. Dessa forma, para que a escalada fosse considerada válida, deveria escalar desde o chão até o final da via sem quedas e sem se utilizar de meios artificiais para tal. Acabava de inventar o “red point” (ou cadena se preferir), termo até hoje mundialmente aceito e utilizado pelos escaladores esportivos.

Kurt Albert em um momento "solo"

Nessa mesma “leva” aparece o maior escalador esportivo de todos os tempos, o alemão Wolfgang Güllich (1960 – 1992). Güllich foi um desses excepcionais escaladores capazes de romper os limites do possível, e sem por isso perder a modéstia. Durante o tempo em que esteve presente, foi responsável pela quebra de vários níveis de dificuldade na escalada mundial. Durante sua trajetória, estabeleceu o primeiro 8b Fr (10b Br) com a via “Kanal im Rückun” em 1984; o primeiro 8b+ Fr (10c Br) com a via “Punks in the gym” em 1985; o primeiro 8c Fr (11a Br) com a via “Wallstreet” em 1987 e o primeiro 9a Fr (11c Br) com a mítica via “Action Direct” em 1991.

Wolfgang Güllich no famoso solo da via "Separate Reality" no El Captain - Yosemite - EUA

Além disso, Güllich foi um dos primeiros a levar a alta dificuldade conquistada na escalada esportiva ao big wall, aplicando sempre o conceito da escalada livre, desde as extremas paredes do Karakorum (Paquistão), até as imponentes paredes patagônicas. Teve também uma breve passagem pelo Brasil na década de 1980, deixando a via “Southern Confort” – 10a Br, que por muito tempo foi a via mais difícil do Brasil e da América Latina.

Güllich na sua criação - "Action Direct"

Foi um dos primeiros também a realizar treinamento específico para um objetivo determinado, inventando o “campus board” para realizar a cadena do primeiro 9a Fr do mundo.


Campus board para mandar a via
Infelizmente o destino desse grande escalador foi uma morte precoce, onde não suportou os ferimentos de um acidente de carro. Güllich voltava de uma entrevista numa rádio local e dormiu enquanto dirigia. Uma grande perda para o montanhismo, porém sempre será lembrado e respeitado pela comunidade escaladora.

Bem, encerramos por aqui a primeira parte desse artigo, onde pudemos dar uma breve "pincelada" na história da escalada mundial. Lembrando que o foco foi o avanço da escalada esportiva ao longo dessas décadas, e caso algum nome ou fato importante tenha ficado sem o devido registro, sinta-se a vontade para nos corrigir e colaborar com mais informações. Afinal esse espaço também é seu.

No próximo post, iremos dar continuidade ao assunto, procurando sempre passar com a maior clareza e fidelidade possível todos os principais momentos da escalada esportiva mundial.

Uma ótima semana a todos e bons ventos...